terça-feira, 7 de agosto de 2012

Série "drogas" - Texto 7 - Redução de Danos e Terapias de Substituição

Este artigo foi publicado em periódico indexado (referência: CAMPOS, MA e SIQUEIRA, DJR. Redução de Danos e Terapias de substituição em debatecontribuição da Associação Brasileira de Redutores de Danos. Jornal Brasileiro de Psiquiatria vol 52 (5): 387-393, 2003.). Foi uma evolução da participação em eventos científicos. A partir de convite para expor o assunto em evento na Faculdade Paulista de Medicina (evento organizado pelo Dr Carlini), foi escrito este artigo. Em função dele (e da participação no evento que lhe deu origem), fui convidado a integrar a Camara de Assessoramento Técnico Científico do Conselho Nacional Anti-Drogas, da SENAD (então chamada "Secretaria Nacional Anti-Drogas", atual "Secretaria Nacional de Políticas de Drogas"), do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, no governo Lula.



Redução de Danos e Terapias de Substituição em Debate
Contribuição da Associação Brasileira de Redutores de Danos

 

Marcelo Araújo Campos e Domiciano J. Ribeiro Siqueira


“É preciso superar o momento em que as drogas são inimigas da vida


Resumo: A Aborda entende Redução de Danos como Movimento Social para a busca de um estado de maior bem estar social para todos, usuários ou não de drogas legais ou ilegais. As terapias de substituição (TS) são naturalmente entendidas como parte do repertório de ações de redução de danos, ao transigir com o uso de drogas e não ter como meta única a abstinência. Sua implantação no Brasil para drogas ilícitas - principalmente cocaína e maconha - demanda desconstrução das atitudes "anti-drogas", inclusão e normatização da redução de danos e das TS na rede SUS e re-ordenamento da política nacional de drogas. Nesse sentido a Aborda pode ser um ator importante para a discussão dos marcos teóricos e da sua operacionalização em campo, além da necessária atuação de controle social e advocacy em defesa dos direitos das pessoas que usam drogas. Dado o enorme prejuízo que a atual perseguição penal das pessoas que usam drogas ilícitas implica para elas e para a sociedade em geral, soa pouco efetivo reduzir as terapias de substituição (ou a redução de danos em geral) a atos de promoção da saúde stricto sensu, sendo imprescindível incluir nas discussões da sua apropriação pelo SUS alternativas para a necessária regulamentação, em algum grau, da produção, comércio e consumo dessas drogas. O melhor efeito que a implantação das TS poderia trazer seria a substituição do discurso e atitude anti-drogas por um novo paradigma de maior inclusão social e tolerância.

Unitermos: Drogas, Redução de Danos, Terapia de Substituição, Movimentos Sociais

Harm Reduction and Substitution Therapy: The Brazilian Harm Reduction
Outreach Workers Association (ABORDA)  Point of View

Aborda understands Harm Reduction as a Social Movement towards a state of greater welfare for everyone, whether they use drugs or not. Substitution therapies (ST) are naturally considered part of the harm reduction set of strategies, inasmuch as drug use is tolerated and abstinence is not the only objective. To implement those illicit drugs therapies in Brazil - mainly cocaine and marijuana - the "anti-drug" attitude must be deconstructed; harm reduction, and ST must be included and normalized in the Public Health System (SUS, in Portuguese); and national drug policy must be reordered. In that sense Aborda can play an important part in the discussion of both its theoretical benchmarks and field operations, besides the necessary social control activities and drug users rights advocacy. Given the enormous damages the actual criminalized persecution represents to those who use illicit drugs and for society as a whole it does not seem effective to merely consider substitution therapies (or harm reduction in general) as health promotion activities. As the discussions about its appropriation by the Public Health System continues, it is necessary to address alternatives to an indispensable regulation to some extent of production, sales, and consuming of those drugs. The best consequence of ST implementation would be the substitution of the anti-drug discourse and attitude by a new paradigm of greater social inclusion and tolerance.

Key-words
Drugs, Harm reduction, Substitution therapy, Drug policy, Advocacy


O conceito de Redução de Danos (RD), na história da Aborda, foi “estratégia de saúde”, passou porpolítica de saúde” e agora é melhor expresso comomovimento social”[1].
Em que pese a utilização, no senso comum, da expressão “redução de danospara qualquer situação onde exista busca de diminuição de prejuízos, ou mesmo ao se referir especificamente a (eventuais ou potenciais) prejuízos resultantes do uso de psicoativos, a Redução de Danos (escrita com iniciais em maiúsculas), como movimento social, superou o paradigma sanitarista, sendo agora entendida como busca de estado de maior bem estar social para todos, com ou sem uso das drogas, inclusive daquelas tidas como ilegais.
Da mesma forma, as terapias de substituição ganham, na RD, interpretação pelo movimento social, ou seja, são lidas e construídas também pelo viés ideológico.
O objetivo deste texto, contudo, não é promover debate ideológico, mas, atendendo a convite do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), apresentar o entendimento pela Associação Brasileira de Redutores de Danos das terapias de substituição como uma das estratégias de reduzir danos, naturalmente permeadas pelos valores eleitos pelo movimento social de RD, esclarecendo como estes valores implicam mais que colorido ideológico: eles são, não raro, definidores da eficácia das ações, notadamente daquelas construídas com o público alvo dos Projetos de Redução de Danos: pessoas em geral que usam drogas e que, pelo menos em princípio (e grande maioria) não estão inseridas, comindicaçãoou interessadas em propostas terapêuticas para o uso de drogas em si.
A RD contribui na busca daquele estado de maior bem estar social para todos, indo além e até, se necessário, contradizendo o discurso sanitarista onde este discurso estiver orientado exclusivamente para o controle de doenças, sem buscar saúde integral, ou distanciado dos direitos humanos.

Os objetivos da substituição

Na Aborda, as ações de redução de danos (assim como qualquer construto teórico sobre psicoativos), são pensadas a partir de análise da relação triangulardroga”/”sujeito”/“contexto”, considerando operar modificações qualitativas ou quantitativas em quaisquer dos vértices, de modo a obter resultado final de melhor relação risco/benefício para quem usa e para a coletividade.
O mesmo raciocínio aplicamos às terapias de substituição: elas devem ser fator de equilíbrio bio-psico-social na relação tríplice entre o sujeito, a(s) droga(s) e o(s) contexto(s) de sua vida. Portanto, elas incluem a troca (quantitativa, qualitativa ou em modo de usar) de drogas legais ou ilegais por outras, legais ou não, que melhorem o grau de compatibilidade entre o uso pelo sujeito em cada contexto. Tal “compatibilidade” inclui busca de satisfação do desejo do sujeito, a conservação de sua saúde e a harmonia com a coletividade. A intervenção para reduzir danos busca convivência mutuamente respeitosa entre as pessoas que usam e suas redes de relações, sejam familiares, no trabalho, afetivas, etc.
A atitude de disposição para construir habilidades para aquela compatibilização, reunidas sob o nome genéricoestratégias de redução de danos” (incluindo terapias de substituição), e que transige com a condição de usuário de drogas, é universalmente aplicável e, a nosso ver, direito das pessoas que usam drogasilegais inclusive.
Considerando a magnitude do seu potencial benefício - para estas pessoas, suas redes de contatos e para a sociedade em geral - acreditamos que a omissão das alternativas de redução de danos pelos responsáveis (diretos ou indiretos) pelo atendimento de pessoas que usam drogas é passível de questionamento ético, caracterizando imperícia ou negligência.
Pelo olhar da Aborda, a RD inclui Terapias de Substituição (TS) como uma das opções com nível de exigência mais compatível com as necessidades, capacidades e desejos das pessoas que usam drogas que a abstinência; é propiciadora de construção de vínculo com estas pessoas, e alternativa para aquelas que não têm demanda ou desejo de parar de usar não serem privadas de medidas que lhes oportunizam melhor qualidade de vida e menos riscos, para si próprias, sua rede de relações e sociedade em geral.
Diferentemente de Marllat que coloca como um dos princípios “a redução de danos reconhece a abstinência como resultado ideal, mas aceita alternativas que reduzam danos” [4], na Aborda não não consideramos abstinência como única alternativa válida: sequer a temos como sempre necessária ou desejável.
Embora não persiga abstinência, a RD também reconhece a utilidade das terapias de substituição como alternativa para pessoas em situação de uso problemático/danoso de drogas e com desejo de interromper o uso: estas pessoas podem ter nas terapias de substituição um amparo eficiente no controle de sofrimento nas fases iniciais da abstinência (diminuição ou abolição de desconforto da abstinência) ou como manutenção da abstinência, como acontece, por exemplo, com a oferta de nicotina inalatória, oral ou transdérmica para tabagistas em abandono do hábito.
Tanto para os que buscam abstinência como para os que não a tem como objetivo, as terapias de substituição podem atuar como estratégia de escalada inversa: migração de padrões de uso e relações mais problemáticas com psicoativos para padrões mais harmônicos e menos problemáticos, ou seja, de deslocamento de situação de “abusorumo ao  uso”.
Aceitar que este movimento é possível implica também no rompimento com postulados como o que considera o uso problemático incompatível com transição a uso controlado (ex: “alcoolismo é uma doença incurável”), quando se sabe que tal transição é possível [3].
No caso, por exemplo da cocaína, não se pode desprezar as implicações da observação de que, no caso da substituição da forma de assimilação (e talvez da quantidade) do psicoativo – quando sugerimos uso inalado substituindo injetável - não está sendo colocada a abstinência como única meta para todos os usuários de cocaína desejosos de diminuir ou evitar os riscos do uso injetável, ainda que para muitos a substituição seja considerada etapa na busca de interrupção do uso. Considerarfalha terapêutica” o sujeito que se mantém “dependente” da cocaína inalada seria subestimar o benefício de não fazer uso injetável.


Possíveis contribuições da Aborda à implantação e implementação de terapias de substituição no Brasil

Não é possível desvincular as ações “de saúde” construídas e implantadas com usuários de álcool e outras drogas das ações de fomento ao ativismo, protagonismo e busca de inclusão social destas pessoas, de maneira socialmente transformadora, tanto para superação ou diminuição da sua vulnerabilidade aos agravos à sua qualidade de vida como para eficácia das próprias ações de resgate ou promotoras de sua saúde. As terapias de substituição podem ser mais que intervenção comportamental em muitos sentidos. Sua “medicalização”, ao reduzi-las a “atos de saúdestricto sensu,  assim como algumas correntes entendem a Redução de Danos, subestima o seu valor mobilizador para superação do paradigma “anti-drogas” e implica no atraso de transformações benéficas para a sociedade e para as vidas das pessoas que usam drogas.
A discussão a seguir tenta apresentar as contribuições da Aborda tanto como movimento social como prestação de serviços.

a)Ativismo – (a Aborda como Movimento Social de RD)

O norte da RD é dignidade e qualidade de vida, não consideradas necessariamente incompatíveis com a condição de usuário de álcool ou outras drogas. Para a maioria das pessoas que usam cocaína e maconha os fatores causadores de má qualidade de vida são mais relacionados à sua condição de usuários de drogas que aos efeitos dos psicoativos em si, e isso deve ser considerado mesmo para pessoas com uso problemático oudependência” daquelas substâncias.
O movimento social trabalha pela construção da imagem dos UD como não sendo necessariamente merecedores de cuidados de saúde e questiona as atitudes que os rotulam como dignos de punição e execração. Consideramos que o conceito de “dependência” é tão relativo e impreciso como o de “loucura”, e que mesmo pessoas que se identificam ou são rotuladas comodependentesnem sempre apresentam indicação de tratamento. A própria desqualificação comomarginal”; “doenteoucriminoso” é fonte de stress e condição neurotizante das pessoas que usam drogas, especialmente daquelas hoje tidas como ilegais no Brasil, e um dos estereótipos a serem combatidos com ativismo (incluindo ações de advocacy para defesa dos direitos das pessoas que usam drogas). Esse componente de advocacy deve ser considerado no delineamento das políticas de saúde para o reconhecimento, normatização e disponibilização no SUS das TS, assim como de todas as estratégias de RD.
Nesse caminho rumo à institucionalização da saúde pública que contempla TS e RD, é papel da Aborda/Movimento Social demandar e auxiliar na desconstrução de situação de conflito com a lei das orientações de substituição de drogas ilegais por outras também ilegais, e para o reconhecimento destas ações como eficazes, eticamente legítimas e valiosas. É sabido que a TS, ao disponibilizar uma “fonte regulada” de acesso a drogas, reduz problemas decorrentes da falta de controle sobre a qualidade do produto (ex: risco de overdose ou de danos por contaminantes) e da interação das pessoas que as usam com o mercado ilícito e violento. Há estudos, por exemplo com a metadona, demonstrando como sua entrada no mercado ilícito, e a venda com concentração e pureza alteradas, é deflagadora de problemas com sua qualidade e crimes. O mesmo vem acontecendo com a buprenorfina em vários contextos [2,5,6].
aqui o desafio de discutir TS no Brasil para, por exemplo, cocaína e maconha, incluindo um possível papel de disponibilização destas mesmas drogas (como se faz com nicotina na medicina privada), com qualidade controlada pelo Estado e em contexto regulado e normatizado no Sistema Único de Saúde (SUS), como forma de esvaziar os danos causados pela condição de ilegalidade e vinculação ao ditotráfico de drogas”. Tal discussão deve incluir a alternativa de regulamentação da produção e consumo em algum nível. Não nos esqueçamos da necessidade de se discutir a mesma disponibilização de álcool, talvez enriquecido com Tiamina, para usuários em condição de indigência e que lançam mão de fontes de álcool mais tóxicas (inclusive com metanol) quando a decisão de como resolver o desconforto da síndrome de abstinência é feita tendo na facilidade do acesso a algo que contenha álcool o critério definidor.
O desafio de institucionalização destas propostas é ampliado pelo fato de nem sempre serem compatíveis com a cultura institucional onde se desenvolvem as ações, além de que a própria política de drogas nacional carece de definições. A nosso ver, a Secretaria Nacional Anti-Drogas – SENAD – não tem perfil nem papel definidor desta política que não reúne o repertório real de contribuições dos Ministérios da Justiça, Saúde e Educação para ir além da repressão e da identificação com a superada política norte-americana de “guerra às drogas”, também carente de substituição.

b)Técnico/Operacionais (a Aborda e seus associados como prestadores de serviço)

Apenas ativismo não é suficiente: embora sejam, em números relativos, uma minoria do total de pessoas que usam psicoativos, o número absoluto de pessoas em situação de uso problemático de álcool e outras drogas no que se refere a repercussões negativas para sua saúde física é grande e carente de acesso a assistência de qualidade.
A Aborda foi fundada em 1997 e hoje está presente em 19 estados brasileiros, reunindo cerca de 650 membros que trabalham em diversos projetos e programas de redução de danos, a maioria deles financiada através da Coordenação Nacional de DST e Aids. Em 2003, foram capacitados pela Aborda representantes destes 19 estados a atuarem comoCentros de Capacitação em Redução de Danos”, criados Centros Regionais de Redução de Danos abrangendo o Norte, Nordeste e Centro-Oeste (CRRD-1); Sudeste (CRRD-2) e Sul (CRRD-3), com a missão de fomentar consistência ao movimento de redução de danos e apoiar os trabalhos locais, aglutinando os envolvidos e descentralizando o gerenciamento da Aborda.
O Primeiro Treinamento Nacional de Redutores de Danos foi organizado pela Aborda em 1999 (até Abril de 2003 foram capacitadas aproximadamente 350 pessoas). Através de projetos implantados com a Aborda foram abertos programas de RD no Acre, Minas Gerais, Ceará, Pernambuco, Espírito Santo, Paraná, Mato Grosso, São Paulo, Rio Grande do Sul, Sta Catarina e Rio de Janeiro, inclusive com suporte para criação de associações locais de redutores de danos. Os associados (pessoas que trabalham em diversas instituiçõesgovernamentais e não governamentais) têm na Aborda um espaço de encontro para discutirem e aprimorarem suas práticas, tanto como provedores de serviços de prevenção e assistência a usuários de drogas, como ativistas do movimento social.
Conquanto a cobertura dos PRDs seja numérica (em número de usuários atingidos) e geograficamente ampla, ela é ainda frágil em termos de continuidade e sustentabilidade das ações. Muitos dos PRDs são projetos dependentes de financiamento e não auto-sustentáveis, e a institucionalização e profissionalização das ações de RD é incipiente, insuficiente e pouco sólida. Uma das propostas que está sendo estruturada é a busca da profissionalização dos redutores e da inclusão de técnicas de RD (e de TS) nos currículos de formação de recursos humanos dos Programas de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e Programa de Saúde da Família (PSF). Alguns dos PRDs (ex: no Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia e Minas Gerais) atuam com algum grau de interatividade com o Sistema Único de Saúde (SUS), inclusive com interação com PACS e PSF, além da gradativa aproximação com os CAPS.
Esta interação é forma de equacionar o outro lado da moeda das ações de RD: a melhoria do acesso das pessoas que usam drogas aos insumos e serviços de assistência em saúde, cabendo, além de facilitar aquele acesso, trabalhar pela melhoria da qualidade desta assistência, precária qualita e quantitativamente.
As terapias de substituição podem ser pensadas como ampliação de repertório da assistência a pessoas que usam drogas, mesmo no contexto de precariedade do SUS.
Cabe aqui a observação sobre o próprio conceito de “terapias de substituição”, que encontramos entre elas algumas que se caracterizam como atos terapêuticos (envolvem processo diagnóstico e terapêutico, inclusive com prescrição de medicamentos, idealmente seguindo protocolos amparados na literatura científica) e outras que a nosso ver são passíveis de apropriação (e na verdade aplicadas) pelos redutores de danos, cuja capacitação tem nível de sofisticação similar ao dos agentes de saúde comunitária (embora diferentediscussão sobre o processo de profissionalização dos redutores de danos está sendo conduzida, com participação direta da Aborda, junto ao Ministério da Saúde). É possível que seja mais adequado reservar a expressãoterapias de substituiçãopara aquelas substituições que se caracterizam como atos terapêuticos complexos (estamos tentando evitar a expressãoato médicopara não haver confusão com defesa de classe dos médicos como se fossem os únicos aptos a conduzir tais tratamentos).
As formas de terapias de substituição aplicáveis em campo podem e devem ser consideradas como papel dos redutores de danos (e dos agentes de saúde comunitária em geral). Orientações como a substituição do crack por maconha (ou do crack puro por mistura com maconha) ou da cocaína injetada por inalada são formas de substituição incorporadas ao repertório de alternativas oferecidas aos usuários de drogas, sendo tema de discussões nas capacitações nacionais de redutores de danos feitas pela Aborda desde 1999. Estas substituições são particularmente relevantes no nosso meio, onde as terapias de substituição clássicas (de opiáceos) hoje quase não tem função.
Auxiliar na demarcação no Brasil da fronteira entre atos terapêuticos complexos e não-complexos, bem como no estabelecimento de um corpo organizado de técnicos e conhecimentos sobre substituição, a exemplo do que existe em alguns países, é um dos papéis da Aborda.
Consideramos que o público alvo para terapias de substituição pelos redutores de danos que atuam em campo não sãotodos os usuários” e que os redutores e agentes comunitários de saúde não serão os mais indicados para proceder a algumas substituições. Há usuários de álcool e outras drogas que necessitarão de suporte com maior nível de complexidade. O papel dos redutores de danos é melhor desempenhado onde podem promover o acesso destes usuários a serviços de saúde (SUS), os quais são poucos e nem sempre transigem com a condição de usuários (em geral, a meta colocada é “não usar drogas”) sendo necessário normatizar as alternativas de substituição (assim como está sendo com as alternativas de redução de danos) nestes serviços.
Existe potencial para aproveitamento da rede de redutores de danos, que tem entre seus papéis o de facilitar o acesso das pessoas que usam drogas a insumos e serviços de saúde, na consolidação das terapias de substituição outras, além das que eles conhecem e orientam. Mais que executores de terapias, a rede de redutores, que na Aborda inclui grande número de pessoas que usam ou usaram drogas, pode também participar diretamente na construção de conhecimento sobre as terapias de substituição, seja como partícipes em protocolos de pesquisa, seja como detentores de conhecimentos a serem cientificamente avaliados como potenciais terapias de substituição.
Entre formas de substituição e redução de danos de que temos relatos, citamos a troca de cocaína por anfetaminas; o álcool por maconha; o uso de doses baixas de cocaína para contrabalançar o efeito depressor do álcool (ex: ao dirigir), todas apontadas em campo por usuários de drogas e merecedoras de avaliação quanto ao seu real valor, seja como estratégias a serem reconhecidas e apropriadas para obtenção daquela melhor compatibilidade entre o sujeito e a droga em cada contexto, ou para desaconselhar substituições tidas como vantajosas quando, após serem estudadas, não demonstrarem sê-lo.
            Neste pontoque considerar a maior maleabilidade e disposição para enfrentamento de questões legais pelas organizações da sociedade civil que possuem o discutido papel de transformação social. Por exemplo, a troca de crack por maconha é conhecida e estimulada pelos redutores de danos em campo, mas a maioria das instituições (governamentais ou não) que realizam atendimento a usuários de drogas, presas ao discurso “anti-drogas”, ainda relutam em admitir sua utilidade ou o fazem de forma extremamente tímida, deixando de explorar esta alternativa mesmo quando potencialmente mais benéfica para quem atendem.

Conclusões e considerações finais


Classificar RD (que inclui as TS) comomedida paliativanão faz sentido, que o objetivo da RD não é perpetuação de situação de uso problemático de drogas, o que seria manter ou mesmo aumentar danos ao invés de reduzí-los. Os tratamentos de substituição podem também ser vistos como “redução de danos” (ainda que não ideologicamente identificados com o Movimento Social de RD) para os que, em sofrimento com sua condição de usuários, desejam ajuda para interromper ou organizar o uso, e sempre lembrando que RD, como entendida pela Aborda, não considera abstinência como única meta válida ouestado ideal” de controle sobre o uso. O objetivo é convivência mutuamente respeitosa, bem estar para os indivíduos com maior sintonia entre direitos individuais e coletivos.
A inclusão das TS de forma mais sistematizada e institucionalmente sustentada na rede de saúde do SUS tem no movimento de redução de danos tanto um potencial executor como um beneficiário: ao melhorar sua atuação com a inclusão das terapias de substituição, os redutores de danos também se fortalecem como categoria profissional.
Pelo olhar da RD, as TS não devem ser confundidas comoetapas ou estratégia para busca de abstinência”, nem justificadas ou reforçadoras de atitudes “anti-drogas”. Tal construto teórico (a inclusão de TS como parte do discurso “anti-drogas”) seria, além de cientificamente inconsistente e de lógica confusa, limitadora dos benefícios que as pessoas que usam drogas e a sociedade em geral podem obter com sua disponibilização. Esta disponibilização, por sua vez, implica descriminalização e regulamentação de consumo de psicoativos hoje tidos como ilegais, essencial tanto para real operacionalização da TS destes psicoativos no SUS como para quebrar a vinculação de pessoas que os usam (mesmo se não formalmente inseridos em TS) à criminalidade. Substituir a condição de incluídos na marginalidade pela inclusão social seria o ganho maior da implantação das TS tanto para estas pessoas como para a sociedade em geral.
Somos uma sociedade de consumo, tendo o desejo como mola mestra desse processo que não sobrevive sem a continuada re-invenção do desejo e incitamento à busca de sua satisfação. As substâncias tidas comodroga” podem ser vistas como mais um produto para aquela satisfação, além de tamponamento para a insatisfação.
Em tempos de globalização há o risco de sobrar aos Estados menos técnica, política ou economicamente capazes de construir e defender suas decisões se submeterem a interesses que não são o do seu povo, exercendo o seu poder para a repressão, o que os distancia da função fomentadora de bem estar social para todos. Ao passar a instrumento para servir ao fluxo de capitais, o Estado perde as suas bases, sua soberania e independência, tornando-se mero serviço de segurança (policial inclusive) para os incluídos nas relações legal e socialmente aceitas.
Os que não pertencem à elite ou não estão dispostos a modificar seus modos de vida para compactuar com as mesmas regras (como grande parte das pessoas que consomem drogas ilegais) são continuadamente acusados de serem “ameaça ao Estado ou à sociedade”, desqualificados e incluídos na marginalidade. Mesmo usuários de drogas de alta renda, a despeito de estarem menos vulneráveis à violência das regras do “tráfico”, também têm seus hábitos estigmatizados (e bem escamoteados para os “de fora”) e alguma vulnerabilidade ao envolvimento com outras formas de violência, como a corrupção.
Neste contexto “anti-drogas”, os muros dos controles, dos quais a política de “tolerância zero” (que também pode ser lida comointolerância 100%”) é instrumento, ficam mais altos, as satisfações dos sonhados desejos ficam mais distantes, as pontes para o atravessamento para uma vida mais digna e cidadã revelam-se poucas, estreitas e quebradiças. É tempo de inverter esse processo, e a Redução de Danos, como Movimento Social – do qual a Aborda é expoente - é um dos caminhos para devolver à sociedade brasileira e ao Estado por ela constituída a condução da sua política de drogas, com justiça e independência.
  

Agradecimentos

A Francisco Inácio Bastos, Christiane Moema Alves Sampaio e Luiz Paulo Guanabara pelas contribuições.


Referências Bibliográficas:

1-Campos, M.A. e Sampaio, C.M.A. Introdução. in Campos, M.A. e Sampaio, C.M.A. (orgs). Drogas, dignidade e inclusão social – a lei e a prática de redução de danos. Rio de Janeiro: Aborda. 2003. pp 11-12.
2-Jaffe JH, O'Keeffe C.From morphine clinics to buprenorphine: regulating opioid agonist treatment of addiction in the United States. Drug Alcohol Depend. 2003 May 21;70(2 Suppl):S3-S11.
3-Larimer, M.E.; Marlatt G.A.; Baer, J.S.; Quigley, L.A.; Blume, W.A.; Hawkins, E.H. A controvérsia do beber controlado. (Sub-ítem do capítulo 3 - “Redução de Danos para Problemas com Álcool: Ampliando o Acesso e a Acolhida dos Serviços de Tratamento e Prevenção”). in Marlatt, G.A. et alii - Redução de DanosEstratégias práticas para lidar com comportamentos de alto risco. Porto Alegre: Artes Médicas Sul. 1999. pp. 66-69.
4-Marllat, G.A. Princípios básicos e estratégias de redução de danos. in Marllat G.A. et alii. Redução de DanosEstratégias práticas para lidar com comportamentos de alto risco. Porto Alegre: Artes Médicas Sul. 1999. p 46.
5-Reilly D, Scantleton J, Didcott P.  Magistrates' Early Referral into Treatment (MERIT): preliminary findings of a 12-month court diversion trial for drug offenders. Drug Alcohol Rev. 2002 Dec;21(4):393-396.
6-Seymour A, Black M, Jay J, Cooper G, Weir C, Oliver J.  The role of methadone in drug-related deaths in the west of Scotland. Addiction. 2003 Jul;98(7):995-1002.