Texto experimental, escrito em 2003. As notas numeradas incluem comentários e referências bibliográficas.
Mitos e lógica - reflexões sobre as crenças à luz dos textos freudianos.
Marcelo Araújo Campos
“Cada um do sumo bem a idéia apreende,
que lhe suaviza a rude inquietação
e às exigências de sua alma atende.”
Dante Alighieri. A divina comédia.
Em “Totem e Tabu” (1913), “O futuro de uma ilusão” (1927) e “O mal estar na civilização” (1929) Freud apresenta análises e teorias sobre a cultura, incluindo discussão sobre as tentativas humanas de lidar com a sensação de desamparo perante o mundo, segundo ele a origem da religiosidade.
Este texto parte dos conceitos freudianos para a discussão de alguns pontos deles derivados, com ênfase na relação entre mitos e lógica e nos impactos que a adoção do senso religioso tem sobre as relações entre indivíduos e coletividades, que insights são obtidos e que novas conclusões e significados são encontrados ao aplicar o olhar da psicanálise à influência da religião naquelas relações (sem deixar de reconhecer a limitação desta leitura feita por alguém para quem os próprios conceitos de psicanálise são novos e ainda pouco compreendidos e amadurecidos).
Estas reflexões foram, quando possível, amparadas em leituras, sem recusar o desafio de tentar alguma análise pessoal sobre as idéias discutidas.
Basicamente, o que se faz é discutir a construção, implicações e representações relativas ao conceito do “senso religioso” conforme definido por Luigi Giussani (1988) que o descreve como uma característica humana, uma necessidade de sentido para a existência humana que, opina ele, só pode ser obtido no reconhecimento do “mistério” e da “aceitação de Deus”. Não sem risco de perda e de afrontamento às idéias de Giussani, para melhor delineamento do objeto de estudo neste texto é usada a expressão “senso religioso” no sentido de “desejo de transcendência”, ao que Freud se refere como sendo uma das defesas humanas contra a sensação de desamparo.
Dado o percurso proposto, torna-se necessário também um alinhamento com o leitor dos conceitos de “mito” e “lógica”. Recorre-se a Karem Armstrong (2001), para quem os mitos servem para dar sentido, enquanto o logos (a lógica) serve para estruturar o manejo da realidade:
“O mito, considerado primário, referia-se ao que se julgava intemporal e constante em nossa existência. Remontava às origens da vida, aos fundamentos da cultura, aos níveis mais profundos da mente humana. Reportava-se a significados, não a questões de ordem prática. (...) O mythos de uma sociedade proporcionava-lhe um contexto que dava sentido a seu cotidiano; dirigia sua atenção para o eterno e o universal. (...) O mito não comportava demonstrações racionais.” Sobre o lógos: “(...) o logos é o pensamento racional, pragmático e científico que permite a atuação do homem no mundo. (...) o logos nos é familiar, constitui a base da nossa sociedade. Para ser eficaz, o logos (...) precisa ater-se aos fatos e corresponder a realidades exteriores. (...)”.
Já aqui se tem muito sobre o que refletir aplicando a “leitura flutuante” com os olhos da psicanálise. Os seres humanos, sujeitos desejantes, não se atêm àquela distinção entre mitos e lógica. Querem o que dê sentido mas também os ajude a interagir com o mundo. Volúveis, relativizam a lógica ao ponto de abrir mão de seus rigores para aproximá-la dos seus desejos, ou organizam os comportamentos em função dos mitos: podem “mitificar o logos” ou tentar racionalizar os mitos como estratégias para compatibilizar a realidade com os desejos e vice-versa.
Serge Moscovici afirma que a sociedade é uma “máquina conceitual de fazer deuses”, dada sua tendência de tornar todo “sistema de saber” em “sistema de crença”. Estes sistemas de crença são um dos aglutinadores dos indivíduos em sociedades, ou seja, o cimento que une a coletividade (sociedade), é constituído de representações coletivas – “representações sociais”, comparáveis aos “sistemas semiológicos” de Barthes - que estruturam, dão identidade e sentido, formando as visões de mundo compartilhadas em maior ou menor grau pelos indivíduos.
O compartilhamento destas representações coletivas, facetas identitárias das coletividades, dá aos indivíduos a sensação de pertencimento, oferece resposta à pergunta “quem sou eu?”, e provê alívio para as crises existenciais ansiosas por explicações sobre o sentido da vida.
Este compartilhamento – e mesmo a compreensão dos seus significados e a habilidade de usá-los para fazer julgamentos de valores - dos sistemas semiológicos não significa habilidade em desvelar os seus conteúdos ideológicos, e muito menos de desvelar os motivos que levaram à sua eleição. A indistinção entre os sistemas de saber e os sistemas de crença que Moscovici apontara encontra consonância em Barthes:
“Na realidade, aquilo que permite ao leitor consumir o mito inocentemente é o fato de ele não ver no mito um sistema semiológico, mas sim um sistema indutivo: onde existe apenas uma equivalência, ele vê uma espécie de processo causal: o significante e o significado mantêm, para ele, relações naturais. Pode-se exprimir esta confusão de um outro modo: todo o sistema semiológico é um sistema de valores; ora, o consumidor do mito considera a significação como um sistema de fatos: o mito é lido como um sistema fatual, quando é apenas um sistema semiológico.”.
Pode-se concluir que essa confusão, resultado da falta de compreensão dos processos individuais internos e coletivos que organizam e sustentam as crenças (mas também dos anseios pela transcendência que oferecem), deixa as pessoas vulneráveis a serem não só ideologicamente iludidas (ou melhor, a terem suas ilusões alimentadas) mas também a perpetuarem sua condição de atores na manutenção e elaboração de cadeias de significantes e significados cada vez mais intrincadas, sutis e abrangentes, produzindo representações estereotipadas e que possam servir como “normas” ideologicamente orientadas, progressivamente mais alienantes e descomprometidas com a realidade.
Como parte deste processo de reforço e manutenção da crença são utilizados rituais que permitam aos indivíduos experienciarem a “validade” (no sentido da eficácia destes rituais em fortalecerem o mito em seu poder de dar sentido, assim satisfazendo as ilusões) destas representações. Por exemplo, normatizações aparentemente simples como a padronização dos conteúdos (inclusive tipos de cânticos) da missa católica, no século XI, teria tido impacto no fortalecimento da “identidade cristã” dos congregados, que por sua vez, ao ser fortalecida, teria “contaminado” a coletividade induzindo-a à aceitação das normas cristãs como condição de pertencimento, o que foi muito útil para o imperador Carlos Magno, interessado em melhorar a governabilidade sobre populações de diferentes áreas e costumes.
É válido lembrar o exemplo mais recente da eficiência da propaganda nazista, analisada no extenso estudo de Serge Tchakhotine (1939) que nos anos 30 do século XX denunciava (sem conseguir evitar, a despeito de sua atuação na “Frente de Bronze”, a ascensão de Hitler ao poder), os efeitos da propaganda nazista sobre o povo alemão, o qual estava em momento particularmente vulnerável e ávido pela prometida “salvação”. As técnicas de Goebbels para influenciar a opinião pública exploravam forças que, segundo Tchakhotine, atuam na determinação do comportamento dos indivíduos: o impulso da combatividade, o impulso das exigências de nutrição, o impulso sexual e o impulso parental ou da amizade. Independentemente da pertinência da classificação de Tchakhotine (que era discípulo de Pavlov e enfatizava o poder “condicionante” daquelas técnicas), não é difícil concordar que as pessoas (e as coletividades) têm sido influenciadas pelos construtos ideológicos ao longo da história da humanidade, e que esta influência é tão mais eficaz quanto maior o desejo que as massas possuam de serem “salvas” e maior a habilidade dos “salvadores” em organizar um discurso coerente com os anseios coletivos.
Este processo de condução ideológica, contudo, não é sempre aceito por todos de forma passiva e acrítica. Na verdade, conforme o historiador francês Jean Delumeau (2003), a “pastoral do medo” (expressão dele), conduzida pela igreja católica durante séculos, provocadora de angústia (inclusive deixando implícita a idéia de que a felicidade só seria possível para os mortos) através da reiteração da condição dos seres humanos como “pecadores condenados”, teria provocado curioso efeito colateral: a repulsa à angústia (ao medo e ao pecado), identificada como produto do desejo deste Pai (que pareceria desejar que seus “filhos” sofressem) teria sido transformada em repulsa a Deus e impulsionado em direção à recusa deste Deus, conseqüentemente à racionalização e laicização: a pastoral do medo teria despertado demanda por Deus mas também provocado distanciamento das pessoas da religião.
Este processo não era estranho a Freud, que também percebeu que quanto maior a “virtude”, maior a percepção da própria “culpabilidade”: “são precisamente as pessoas que levaram mais longe a santidade as que se censuram de pior pecaminosidade. Isso significa que a virtude perde direito a uma certa parte da recompensa prometida(...)”; ou seja, a falha da atitude “virtuosa” em apaziguar (na verdade, ela aumenta o sofrimento ao aguçar a auto-censura) também pode ser um fator que conduza os homens à recusa da religião, recusa esta manifesta nas retóricas de relativização do conceito de “verdade”, na canalização daquele “senso religioso” para uma espiritualidade menos dogmática ou mais flexível em termos de moralidade e de distinção entre “bem” e “mal”.
Mas não é esse o ponto. Aqui se tenta discutir a trajetória que Freud aponta em “Totem e Tabu” e que conduz a reflexões sobre a adoção da ciência como forma de dar sentido ao mundo, iniciada com o animismo, passando pela religião, e dos desvios que os seres humanos, movidos pelos desejos, acrescentam tornando a trajetória (e a sua interpretação) ainda mais tortuosa: volte-se à tendência a “mitificar a lógica”.
Em 1906, vinte e um anos antes de Freud escrever “O futuro de uma ilusão”, o escritor americano Samuel Langhorne Clemens, sob o pseudônimo de Mark Twain, já no final de sua vida, escreveu:
“Deve a religião cristã durar? Que idéia! Ela sucedeu a mil outras religiões, hoje todas mortas e enterradas. Milhões de deuses precederam a invenção do nosso. Multidões deles morreram e foram esquecidos desde há muito. Nosso Deus é, contra toda expectativa, o pior que a engenhosidade do homem engendrou em sua imaginação enferma; e seria preciso que com todo o Seu cristianismo, Ele permanecesse imortal, contradizendo as lições que podemos extrair da história teológica? Não, é claro. O cristianismo e seu Deus devem submeter-se à regra comum. Eles, por sua vez, apagar-se-ão e darão lugar a um outro Deus e a uma religião ainda mais estúpida que a nossa.”.
Talvez fosse difícil para Twain imaginar o que seria a “próxima religião”, e mais difícil ainda ele perceber como a própria razão, que ele tanto valorizava, pudesse ocupar esse lugar: a trajetória “animismo-religião-ciência”, ao invés de ser processo de desalienação, pode apenas aprimorar e dar sofisticação ao mesmo paradigma religioso quando elege o cientificismo como (falso) substituto da religião. Em que pese a necessária distinção entre cientificismo e ciência, é inegável que a adoção da racionalidade como antídoto para a angústia não raro resvala para a negação do processo científico de desalienação e o retorno a mecanismos de defesa amparados em “verdades científicas” buscadas com a mesma ansiedade pelo “absoluto”.
Mais uma vez, a tendência dos “iludidos” a não perceberem a ilusão se repete: é curioso como se apresenta uma oposição religião/razão, sem que seja desvelado como atitudes fundamentalistas - religiosas ou positivistas - se apegam às “verdades absolutas” e não discutem as origens desta demanda pelo absoluto: ela é tida como “inerente ao homem”.
Veja-se, por exemplo, o que Karem Armstrong conta sobre a atitude de Thomas Huxley, que no final do século XIX fazia veementes pronunciamentos em defesa da teoria da evolução de Darwin, então recém-divulgada:
“Huxley percebia claramente que se tratava de uma luta. A razão devia ser o único critério da verdade. Cumpria optar entre a mitologia e a ciência racional. Não existia meio termo: ‘uma ou outra há de sucumbir após uma batalha de duração desconhecida’. O Racionalismo científico era uma nova religião secular, demandava conversão e entrega total.”.
Pode-se argumentar que o saber humano, quando voltado para a busca de resposta para perguntas de cunho existencial é “filosofia”, e não “religião”. Farrington (1999), ao discutir o budismo, afirma que a filosofia deixa de ser filosofia quando se torna religião, mas isso não diz muita coisa. O budismo, embora não tenha como princípio ou condição a devoção a deuses, reconhece a existência de divindades. Talvez a distinção entre “filosofia” e “religião” não esteja no “corpo teórico”, mas nas motivações de quem o lê: o “religioso” lê em busca de “salvação” mais que de regras de conduta ou de compreensão das relações humanas entre si ou com o universo.
Sem revisão da literatura, são lembrados dois exemplos de literal institucionalização do culto à racionalidade: A Igreja Positivista, fundada em 1851, quando Auguste Comte publicou o seu “Sistema de Política Positivista ou Tratado de Sociologia Instituindo a Religião da Humanidade” seis anos antes de sua morte (um período de aguçamento do “senso religioso”, mesmo para um positivista e ainda que sob um discurso de repúdio ao “sobrenatural”); e a “Igreja de Cientologia”, fundada em 1954, na américa, por Lafayette Ron Hubbard, falecido em 1986.
Esta atitude, embora nitidamente contraditória ao espírito científico no que ele tem de mais necessário (a despersonalização, isenção e desprendimento de desejos que possam induzir a ilusões), pode ser tão emocionalmente carregada como as atitudes em relação a dogmas religiosos: Comte e Hubbard defendiam ardorosamente suas crenças, tentaram estruturar seus arrazoados em defesa de suas idéias com argumentos nem sempre claros ou coerentes, utilizavam silogismos, informações incorretas e meias verdades da mesma forma como se comportam autoridades nas escrituras religiosas, produzindo elucubrações sofisticadas para tentar dar consistência lógica ao mito (de novo a mistura “mito/lógica”).
É digno de nota assinalar processo semelhante muito mais antigo: no século IX, no império abácida, quando os árabes entraram em contato com a ciência e a filosofia gregas, houve o surgimento de um novo muçulmano dedicado ao ideal que chamavam “falsafa”, e que não reconhecia separação entre ciência e filosofia mesmo quando aplicadas à religião. Como nos conta Armstrong (2001, pg 185):
“Os ismaelitas (...) tinham desenvolvido sua própria filosofia e ciência, que não consideravam como fins em si, mas como disciplinas espirituais para possibilitar-lhes perceber o sentido interior (“batin”) do Corão. (...) Em vez de usar a ciência para adquirir uma compreensão exata e literal da realidade externa, como nós fazemos, usavam-na para desenvolver a imaginação. Voltaram-se para os mitos zoroastrianos do Irã, fundiram-nos com idéias neoplatônicas e desenvolveram uma nova percepção de história da salvação.”
Como se vê, o uso da lógica para dar consistência ou amparo racional aos mitos é historicamente ubíquo. Neste ponto, pode-se tentar ir mais fundo nas sutilezas da retórica religiosa: tome-se a citação “Creio por que é absurdo”, que Freud menciona mas não interpreta: analisá-la é oportunidade de aplicar o raciocínio freudiano sobre a criação da religião. Fica evidente que seu sentido é “me satisfaz por que é misterioso”, ou seja: “me permite recusar a racionalidade crua e sem esperança”. Aquilo que não sugere transcendência não serve como objeto de fé, ávida pela superação do comum, e simplesmente não faz sentido “crer” no que não está além da capacidade de racionalizar. Só o que é absurdo e desafia a compreensão (onde a racionalidade não alcança) serve para ser objeto de fé.
Esta mesma “leitura crítica/flutuante” dos arrazoados em defesa da fé, conquanto deselegante pelo que soa de pretensiosa e desrespeitosa (embora não seja esta a intenção), permite perceber como, por exemplo, se usa a eficácia da “conversão” ou “aceitação de Deus” em aliviar a angústia como prova da existência de Deus: “Quando creio, isso me alivia, portanto prova que Deus existe”. Um efeito placebo literalmente divino. A fragilidade desta argumentação pode ser constatada com analogia simples: a sensação de segurança que se tem ao dormir acreditando que a porta de casa está trancada não é prova de que a porta esteja trancada. Também é usado o argumento contrário: a angústia e sofrimento psíquico dos que não creem é apresentada como conseqüência de teimosa recusa de algo que é “natural” (já que “filhos de Deus”): o senso religioso e a necessidade de “retorno ao Pai”. Seria análogo se dizer que a frustração e decepção das crianças ao saberem que Papai Noel não existe prova a existência do “bom velhinho” (outra figura paternal).
Um outro argumento, das “conseqüências adversas”, ao propor que Deus deve existir, caso contrário seria desastroso, tem tanta eloqüência como falta de lógica: “Deve existir um Deus que confere castigo e recompensa, porque, se não existisse, a sociedade seria muito mais desordenada e perigosa – talvez ingovernável”. Como se a conseqüência adversa tivesse relação direta com o pressuposto da existência: soa mais chantagem emocional que argumentação digna de ser apresentada: “Isso não pode acontecer, por que se acontecesse eu iria ficar muito triste...”, uma demonstração de sobreposição do princípio do prazer ao princípio da realidade, atitude tipicamente infantil, mas não destituída de utilidade, como escreveu Políbio algo ironicamente:
“como as massas são inconstantes, presas de desejos rebeldes, apaixonadas e sem temor pelas conseqüências, é preciso incutir-lhes medo para que se mantenham em ordem. Por isso os antigos fizeram muito bem ao inventar os deuses e a crença no castigo depois da morte”
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Talvez seja exigir demais dissecar os mitos tão friamente, já que isso é aplicar a razão a algo que não serve para o campo da razão: já foi visto que o compromisso dos mitos não é com a lógica, mas com a sua eficiência em satisfazer a demanda por algo que dê sentido. Abre-se mão da lógica se ela ameaça as ilusões, ou seja, a opção é pelo princípio do prazer.
Este apego às ilusões não significa que as religiões não possuam também a função de “domesticar” o princípio do prazer (em nome de uma recompensa maior mais tarde, no “paraíso”) e de amparar (ainda que com motivos também ilusórios, como o temor da perda do amor do “Deus Pai”) a renúncia à satisfação das pulsões, renúncia esta tida como condição para o acesso ao prêmio após a morte. Tal auto-controle é incentivado pelos “corpos teóricos” da maioria das religiões e tido, por exemplo, como um dos objetivos do budismo, conforme descreve Farrington (1999, pg 95): “O homem poderia tomar o ‘Caminho do Meio’ entre a indulgência sensual e o sacrifício fútil de si mesmo”.
Observação fundamental a todo este arrazoado é considerar que Freud não discute a existência ou não de Deus (assim como antropólogos não discutem a existência ou não de duendes ou do Saci-pererê), mas os mecanismos psíquicos construídos pelas pessoas para lidar com seu mundo interior e com as fontes de seus sofrimentos (as forças da natureza, a deterioração física do corpo com a concretude da morte e os conflitos interpessoais) entre os quais está a religiosidade, instrumento de alívio ao oferecer a perspectiva de ser amado, premiado, acolhido e feliz numa vida eterna – mesmo que isso seja possível “apenas” após a morte (na verdade, a maioria das religiões também relativiza a morte). Fina ironia para um texto como este, produzido no contexto de estudo da psicanálise, é lembrar como a própria invenção da psicanálise também pode ter sido fruto da mesma busca de alívio (mas a mesma psicanálise se salva, ao apontar que o que move os homens é sua condição de incompletude – tudo que se faz e se cria é fruto deste eterno impulso da “falta”), conforme Karem Armstrong (2001, pg 14):
“As histórias da mitologia, que não pressupunham uma interpretação literal, constituíam uma forma antiga de psicologia. (...) A falta de mito na sociedade moderna obrigou-nos a conceber a ciência da psicanálise para nos ajudar a lidar com nosso mundo interior”.
Volta-se então ao olhar psicanalítico. Um dos pontos superficialmente sugeridos mas ainda não abordado é: se as religiões podem ser tanto fonte de sofrimento (na medida em que acentuam nossa sensação de culpa) como de apaziguamento (ao acenar com a “salvação”), tem-se o desafio: onde o pathos? Ou, de outra forma: o que a crença tem de sintoma para os indivíduos? E quando (e para quê) se justificaria intervenção “terapêutica”?
Logo de início, não se pode simplistamente imaginar que a crença, ou a fé, sejam “ilusão”. Talvez seja mais apropriado chamá-la “erro”, no sentido de que não é, como a ilusão, produto (apenas) do desejo: as crenças são parte da bagagem cultural transmitida no escopo do conhecimento tido como válido através das gerações. Ainda que o apego a elas possa ser chamado “ilusão”, sua introjeção vem com o pacote de “visão do mundo” que os sujeitos recebem como parte de suas estruturações de seres sociais que compartilham formas de pensar o mundo.
É mais fácil identificar algo de sintomático na representação e no apego ou na maneira de lidar com a crença religiosa que no fato de possuir a fé, e mesmo onde se vislumbra este “algo de sintoma” isso não autoriza a absolutizá-lo como patológico, já que uma das medidas do que se considera “normal” é a integração social, a capacidade do indivíduo que compartilha os sistemas semiológicos - e lida com eles de maneira eficaz - ser reconhecido como “ajustado” e de manter relações “produtivas” no trabalho, vida afetiva e demais interações humanas. Portanto, alguém fundamentalista que vive numa comunidade fundamentalista poderá ser tido como mais “normal” (e mais valorizado e aceito) que alguém que seja “ateu”. É sobre este que recairá a suspeição quanto a sua sanidade mental ou, no mínimo, sobre o grau de confiança que merece.
Dizendo de outra forma, uma ilusão coletiva não é ilusão para os indivíduos que compartilham a mesma visão do mundo. Para os indivíduos, ela não é um produto de suas defesas, mas um aprendizado, parte do “senso comum” (no sentido usado por Moscovici), portanto não é nos indivíduos “crentes” que se encontra o “adoecimento original”. A ilusão é coletiva, o “erro” pode ser individual. É na representação do erro (e na maneira de lidar com ele), característica subjetiva do sujeito, que pode haver ou não algo de realmente caracterizável como sintomático e correlato às neuroses.
Nos sujeitos “crentes”, tem-se graus variados de ocupação do campo da consciência (às vezes com restrição, por exemplo nos obsessivos), enquanto na coletividade desponta o adoecimento da intolerância e dos crimes contra a humanidade. E ao olhar as coletividades, as perguntas em busca do pathos (social) são outras. Exemplo: qual o impacto que a crença tem nas relações entre os indivíduos e entre as sociedades que não compartilham a mesma crença? Talvez esta pergunta possa ser respondida com uma tentativa de aplicação à sociologia dos mecanismos de funcionamento da mente descritos por Freud no Projeto de 1895, numa espécie de “metapsicologia social”, investigando os insights que se obteria ao buscar nas sociedades o que seria o seu “complexo de édipo” (por exemplo, como Hélio Pelegrino aborda no seu texto “Pacto edípico e pacto social”, de 1984), o narcisismo, os ideais do “eu” e os “eus” ideais, etc, mas é tema por demais sofisticado para o escopo deste texto e para a capacidade de análise do autor.
A intolerância religiosa tem sido historicamente fonte de guerras e enormes danos sociais. Embora reconhecida como inadequada mesmo pelos fundamentalistas cristãos, islâmicos ou judeus, as pessoas encontram dificuldade em agir de maneira imparcial e colocar a tolerância em prática: tendem a rotular o diferente como ameaça, ainda que julguem os conflitos entre facções “terceiras”, que não lhes dizem respeito, como “fanatismo irracional”. É possível que para um indiano os massacres mútuos entre cristãos católicos e protestantes na Irlanda soe tão alucinado, “terrorista” e estúpido como as agressões entre judeus e árabes para a sociedade cristã ocidental. No entanto, os ocidentais não rotulam os Irlandeses de “fanáticos”, nem generalizam o rótulo de “terrorista” para todos os cristãos, como algumas culturas ocidentais rotulam os árabes (mesmo quando não adeptos do islamismo).
Se buscar desalienação é necessário, isso não quer dizer que seja desejável - ou possível - desconstruir as crenças religiosas: elas podem ser (e efetivamente o são) arcabouço ético e estruturante do manejo da angústia para milhões de neuróticos “normais”. Melhor caminho é o investimento na ética, que, se não é conceito absoluto, encontra representação no senso comum como necessidade de respeito mútuo.
Quanto à angústia que poderia ocorrer, secundária ao vazio da desalienação, talvez seja possível superá-la com o prazer obtido em compensações: a sensação narcísica de ser bom numa sociedade que valorize e premie o altruísmo, o respeito mútuo, a tolerância; a sensação de pertencimento, o acolhimento e encorajamento do grupo para os que se esforçam na busca de um estado de maior bem estar social para todos (crentes ou não).
Esta atitude de disposição para o ativismo social é também encontrada em Freud:
“Os críticos insistem em descrever como ´profundamente religioso´qualquer um que admita uma sensação de insignificância ou impotência do homem diante do universo, embora o que constitua a essência da atitude religiosa não seja essa sensação, mas o passo seguinte, a reação que busca um remédio para ela. O homem que não vai além, mas humildemente concorda com o pequeno papel que os seres humanos desempenham no grande mundo, esse homem é, pelo contrário, irreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra.”
Ou seja, “religião” para Freud é também (além de ilusão) inconformismo e ativismo, assim como o era para os ismaelitas: Jafar ibn Sadiq, sexto imã, definira a fé como “ação politicamente engajada”, e no Brasil de hoje a bancada evangélica no legislativo é uma das grandes forças políticas. Em que pesem as tendenciosidades ideológicas e a perda de legitimidade deste ativismo quando voltado para defesa de interesses próprios ao invés de auxiliar na construção da tolerância, há que se reconhecer o valor do ativismo bem direcionado, mesmo que a realização de seus objetivos plenos (um estado de absoluta “felicidade” e harmonia social) pareça incompatível com a condição humana de seres em contínua busca de si mesmos e renovadamente desafiados a se haverem com seus desejos e ilusões. O mal estar (dos sujeitos e do grupo) poderá ser diminuído à medida em que se substituir a intolerância pela capacidade de reconhecer as próprias neuroses, buscando amparo mútuo no gerenciamento das angústias pessoais, respeitando e atuando na condição humana de seres à mercê da natureza, da morte e da necessidade de abrir mão de muitos de seus desejos.
Uma última contribuição:
“Paradoxo: Felicidade não é atingível, e essa conclusão tranqüiliza. Parte da angústia era imaginar que a ‘culpa’ pela ausência da felicidade era pessoal, algum tipo de fracasso. Ao colocar a felicidade como algo pertencente ao reino do imaginário, me aproximo dela. Rio: Que tristeza! Ué?! Lembro: ‘When me they fly, I am the wings...’ Attar, Brahma.”.
A despeito do compartilhamento simultâneo do desejo de salvação e do entendimento dos significados e significantes que compõem as representações sociais (a cosmovisão) pelos indivíduos, isso não significa que tal entendimento sempre resulte na compactuação e adesão aos mesmos valores e estilo de vida. Em verdade, o entendimento, quando aprofundado, é condição necessária para a superação, em movimento dialético, das representações sociais, superação essa característica de processos de desalienação. Ressalve-se que tal desalienação, no que implica de questionamentos de mecanismos de defesa contra as angústias providos pelas representações sociais, não é sempre vista como valor nem mesmo pelo próprio “rebelde” em busca de sua libertação dos dogmas: ele pode, ao invés de fazer a real ruptura com os mitos, apenas substituí-los por outros que lhe sejam mais satisfatórios e convenientes ou menos conflitantes. (NA).
É necessário repetir que esta crítica ao endeusamento da ciência não é crítica “à ciência em si”, mas ao cientificismo (que usa o conhecimento não para a desalienação, mas para o reforço de ideologias) obscurantista e acrítico. Acrescento que a verdadeira ciência, se não é “salvação” para os seres humanos, pelo menos faz sua crítica, por exemplo, através desta espécie de “meta-ciência”, a epistemologia. (NA).