sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Série "drogas" - texto 8 - Parâmetros curriculares

Este artigo originalmente foi escrito como carta aos colegas da Associação Brasileira de Redutores de Danos (Aborda) presentes no Fórum da Senad, em Brasília, em novembro de 2001, e publicado no número 7 (outubro a dezembro de 2002) da revista eletrônica Polêmica (ISSN 16760727), do Laboratório de Estudos Contemporâneos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Foi um dos pontos de partida do capítulo "Freire e Freud - por uma educação transitiva sobre drogas", publicado pela FIOCRUZ e também postado neste blog. Além dos conteudos aproveitados naquele capítulo, aqui se pode ver aplicação de análise do discurso antidrogas, ainda hegemônico na mídia e na sociedade brasileira.


Educação sobre drogas: construindo parâmetros curriculares


Marcelo Araújo Campos

Prezados Colegas,

Acontece na semana que se inicia o II Fórum da Secretaria Nacional Anti-drogas (SENAD). Sem poder atender ao convite da Unidade de Prevenção da CN-DST/AIDS para participar, preparei contribuição para as discussões focada no que diz respeito às estratégias de "redução de demanda", cuja pertinência quero desde o início deixar claro que questiono. Esse questionamento posso explicar lembrando que, assim como a finalidade dos programas de "educação em sexualidade" não pode ser abstinência, quero crer que não possa ser objetivo de um programa educativo sobre drogas (e que, portanto, deva se nortear pela construção de autonomia) ser norteado pela "guerra às drogas", por "diga não às drogas" ou outras formas de fomento à abstinência de contato com psicoativos.

Oportunamente, encontrei texto publicado na Folha de São Paulo, Sábado, 24 de Novembro de 2001, página A-3 — "Opinião", Coluna "Tendências/Debates", onde fora feita a pergunta: "A maconha deve ser legalizada?". Ao ler as respostas (Fernando Gabeira, deputado federal, e Arthur Guerra, da SENAD), percebi que comentá-las seria oportunidade para apontar e explicar melhor a proposição com que inicio este texto.

A matéria da Folha traz resposta SIM de Gabeira, com subtítulo: "A velha discussão sobre o crime sem vítima", onde Gabeira tece arrazoado sensato, mas pouco focado em uma resposta direta. A resposta NÃO, de Guerra, com subtítulo "Jogar com o risco", identifiquei como rica em pontos a serem comentados, o que faço ao mesmo tempo em que reproduzo o artigo. Diz Guerra:

"Do ponto de vista médico, as pessoas que fumam maconha podem estar em três grupos: os usuários sociais ou ocasionais (cujo consumo não traz complicações ao indivíduo ao à sociedade); os usuários com quadros de abuso (já com conseqüências negativas advindas do uso, como baixo rendimento escolar, dificuldades familiares e alterações psicológicas); e os usuários com dependência (necessita de maconha para relaxar e, sem ela, não se sente bem)."

A afirmação "do ponto de vista médico" é generalista e equivocada: há diversas linhas de estudo sobre psicoativos na ciência médica, e essa classificação vem de uma corrente, não de um "consenso médico". Note-se que as classificações são muito insatisfatórias: dizer que o uso ocasional ou social não traz complicações é falso, haja vista os acidentes de trânsito causados por "usuários sociais" de álcool, maconha ou anfetaminas: o risco de dano, pessoal ou para terceiros, não é decorrente simplesmente da freqüência do uso (o critério das classificações é confuso, ora por freqüência, ora por "abuso" — aliás, onde entra "uso" das drogas ilícitas nessa classificação? —, ora por presença de intolerância à falta). Por exemplo, duas doses de cachaça para alguém em uma festa pode ser "uso", mas se for dirigir talvez seja "abuso". A classificação "usuários com quadro de abuso", conforme se viu, é enganosa, além de que aqueles exemplos de "conseqüências negativas" usados por Guerra para explicar o que seria esse "abuso" me parecem ser mais causa que conseqüência de uso de psicoativos como resposta a crise (o que não quer dizer que todo uso de psicoativo ocorra em contexto de adoecimento psíquico, conforme o próprio Guerra afirma adiante). Finalmente, a apresentação de "dependência" como o mais alto grau de perigo também é simplista e pouco clara, já que encontramos "dependentes" que fazem uso digno e seguro e não deixam de interagir com o mundo de maneira "normal", mesmo quando lhes possa causar dano à saúde (veja-se fumantes, por exemplo). A frase dá a entender que toda "dependência" é moralmente ruim, sinaliza doença mental ou alguma forma de fraqueza (de caráter?), quando se sabe que a própria definição de dependência é relativa (assim como a de "loucura"), além de que se prender a isso para tentar avaliar se determinado jeito de usar alguma droga pode ser tolerado é a meu ver perda de tempo: a pergunta "existe dependência?" não responde ao que interessa de fato, que é se existe risco para si ou terceiros ou desrespeito ao direito alheio em cada situação de uso. Presença ou ausência de "dependência" não é o mais importante (o que não quer dizer que não existam pessoas que se relacionam de maneira compulsiva e inclusive destrutiva com psicoativos, ou com sexo, ou com dinheiro, ou com poder, ou com religião, ou com esporte, etc., etc. e que possam necessitar ter esse comportamento compulsivo abordado, inclusive com tratamento médico).

"Atualmente, não conseguimos identificar quais são os fatores que levam uma pessoa a se fixar em um desses estágios."

Tal incapacidade é óbvia: já que a classificação é confusa, não surpreende que ela seja insatisfatória ao tentar aplicá-la. As pessoas não necessariamente se fixam nesses estágios porque eles não necessariamente existem. As formas de lidar com os psicoativos podem variar imensamente nos mesmos indivíduos conforme os contextos e épocas de suas vidas, indo ou vindo, agravando ou superando, aprendendo a controlar ou ampliando a compulsão.

"Sabemos que o consumo da maconha é uma condição necessária (só vai ser usuário quem fumar maconha) e que, quanto mais fácil for obtê-la, maior será o risco de a pessoa se tornar usuária."

O que pressupõe que o uso em si é "risco", e isso não é verdade, já que o fato de ser usuário não significa que esse uso será inseguro. Ressalve-se que o contexto de intolerância social não pode ser negligenciado como fonte de dano aos usuários — veja-se o caso da apresentadora Sonia Francine. Mas penalizar o usuário pela intolerância social é dizer que a culpa é dele por fazer algo que a sociedade não aceita, justificando a intolerância (como se faz, por exemplo, com homossexuais). Se não é o fato de ser usuário que é fonte de dano, mas a intolerância social, é a intolerância que deve ser trabalhada.

"Cada uma das situações acima necessita de uma avaliação diferente e de condutas específicas. É óbvio que o usuário ocasional não necessita de tratamento; não é preciso ser médico para entender que a pessoa que apresenta dependência precisa ser tratada. Isso vale para usuários de maconha, cocaína, álcool e (perdão ao leitor desavisado) tabaco."

A abordagem classificatória, uma vez usada como ponto de partida, só vai aumentando a confusão: não é óbvio que o usuário ocasional não necessita de tratamento, já que mesmo um uso ocasional pode sinalizar presença de comportamento adoecido (uso ocasional tamponando situação de sofrimento psíquico pode ser sintomático); e não é óbvio que toda "dependência" tenha de ser tratada ou sinalize adoecimento, mesmo se há intolerância a ficar sem a droga (situação facilmente reconhecida entre usuários de tabaco, de café, etc...). Além disso, o tratamento não pode ser uma "indicação" geral para todos, mas uma demanda a partir de algum sintoma ou mal-estar do usuário ou de quem com ele se relaciona, neste caso desde que não seja por pura implicância (no sentido de intolerância), mas por risco ou dano real ao direito de quem convive com o usuário.

"Diagnóstico em medicina é um procedimento sério que norteia o tratamento. É natural que alguém que tenha um uso social da maconha diagnostique-se como tal. Mas não é natural que a pessoa dependente assim se considere. Funciona exatamente como o álcool: o alcoolista é, geralmente, o último a admitir a gravidade do problema."

A bola de neve da abordagem classificatória continua seu curso. O conceito de dependência é tão relativo como o de loucura: como disse Caetano Veloso, "de perto ninguém é normal". Muito mais útil que insistir em tentar classificar alguém como "dependente" (ou as variações, por exemplo "alcoólatra" ou "alcoolista") é discutir a presença de danos ou ganhos para si próprio ou para terceiros que o uso da droga implique. Sair da rotulação vazia para a identificação mais clara de o que o uso tem de desrespeitoso ou perigoso, para agir aí, ao invés de entrar em conflito com o usuário que pode, sim, ter ponto de vista diferente quanto ao que o psicoativo representa para ele. Insisto, não é a presença ou a ausência de dependência o ponto mais importante para responder se o uso pode ou não ser tolerado.

"Eu penso que a apresentadora Soninha errou ao admitir publicamente que fuma maconha, em reportagem da revista 'Época'. Antes de justificar a minha posição, acho necessário pontuar que o meu conhecimento sobre a apresentadora era bastante restrito, mas que a sua figura era — e continua sendo — simpática. Além disso, tanto na reportagem como em entrevista posteriores entendi que o objetivo de Soninha (peço permissão para usar essa forma carinhosa) era estimular o debate, e não fazer propaganda da maconha.
A começar pelo título da reportagem ("eu fumo maconha"), o que é preocupante é que essa forma de discussão de um tema tão importante favorece a banalização. Não cabe a mim fazer diagnósticos nessa situação, especialmente porque nem conheço a Soninha. Tenho tudo para acreditar que ela é usuária social, ocasional, como ela mesma se apresenta. Mas quem é a Soninha? É uma profissional competente, responsável, que trabalha com um público definido, os adolescentes. Mais do que isso, seus atos são apreciados com atenção, desde a forma como se veste e fala até o modo como se comporta."

Vou me referir à apresentadora usando "Soninha" como pseudônimo, e não apelido. Como Guerra pode afirmar que tem tudo para acreditar que seja assim ou assado, se admite que não a conhece? Ao mesmo tempo, fala que ela é "profissional competente e responsável", sugerindo condescendência para com uma "usuária social", como se dissesse "ainda bem que não é dependente" (como se dependência fosse incompatível com ser profissional responsável e competente), ou seja, há implícito julgamento moral sobre os usuários de maconha, principalmente com os vistos/rotulados como "dependentes".

"Não me sinto à vontade para comentar sua demissão da TV Cultura, visto que o meu treinamento é da área da saúde. Porém, há um momento em que o que o profissional expressa deixa de ser apenas o que ela pensa: reflete o que pensa a instituição que ela representa. Com toda a pluralidade desta Folha, eu não saberia dizer o que aconteceria se um dos colunistas da página A2 (Opinião) — na sua mão esquerda neste momento — trouxesse opiniões pró-terrorismo ou pró-racismo, contrárias à coluna vertebral do jornal".
O exemplo de veiculação de opiniões pró-terrorismo ou pró-racismo coloca no mesmo patamar moral o uso de maconha, terrorismo e racismo, uma manobra de retórica conhecida como "paralelismo", que tem o efeito de contaminar o assunto em questão (maconha) com a aversão a terrorismo e ao racismo, ou seja, é jeito de expressar condenação ao uso da maconha sem explicitar essa condenação. Não comentar a demissão é perder oportunidade de repudiar a injustiça contra usuária, injustiça que me parece moralmente mais grave que o uso de psicoativos em contexto onde não se identificou o que esse uso possa ter de perigoso ou desrespeitoso, ainda que seja ilegal.

"Na minha opinião, as convicções particulares de Soninha são secundárias se tomadas em relação às mensagens que ela deve passar, na posição de liderança e de credibilidade que ela ocupa, representando a instituição, que, em última instância, é alimentada com nossos impostos. Acho que ela não tem o direito, de estando nessa situação, sugerir comportamentos que possam levar a danos, como a dependência de drogas. Eu sei que ela não visa a isso, que não é esse o objetivo de seu questionamento, mas esse é um resultado possível quando o tema é debatido de forma superficial."

A frase "alimentada com nossos impostos" me dá a entender crítica velada, ou seja, é forma de julgar como ruim o que foi dito. Observe-se que ela não está "sugerindo comportamento", e muito menos que possa "levar a dependência de drogas" (além de que, repita-se, "dependência" não é por si mesma o dano). O ponto chave nesse parágrafo, de qualquer modo, é a possível influência sobre os "adolescentes" (já mencionados antes, para reforçar a gravidade da influência), com o que concordo haver motivo para preocupação, embora meus motivos sejam diferentes: não temo essa influência — que pode existir, já que as reações das pessoas são singulares — por poder causar "dependência de drogas", mas por poder causar sensação de segurança em usuários (ou mesmo em quem tem o desejo e até agora não se atrevera ao uso), quando sabemos que a sociedade não tolera uso de maconha: ela não só é ilegal como fonte de execração social aos seus usuários, execração essa que Soninha está sentindo na pele, e que é muito mais grave e impactante nos adolescentes, especialmente jovens pobres, que não têm a quem recorrer e não aparecem na TV nem em colunas de jornal quando são presos pelo mesmo motivo. Portanto, qualquer tranqüilização ou relativização que se faça sobre o uso deve incluir a lembrança de que esse arrazoado não protegerá os usuários da reação social ou mesmo legal, até que se tenha instrumentos legais para essa proteção e contexto de maior tolerância. Causa preocupação o uso de maconha mesmo quando não há nenhum julgamento moral do ato de fumar maconha (ou usar outras drogas ilícitas), pelo que isso acarreta em vulnerabilidade a execração e injustiças. Compare-se com moças afegãs que, sob o regime do Talibã, quisessem andar nas ruas sem a burca: conquanto isso não seja indício de nada sobre o caráter delas e, a nosso ver, direito moralmente banal, se simplesmente as incentivássemos poderíamos deixá-las expostas a violência decorrente do contexto. Não podemos ser ingênuos. Uso de psicoativos em si mesmo é moralmente trivial, mas isso não significa que os usuários estão imunes ao julgamento — e a condenações e punições veladas ou explícitas como a perda do emprego.

"Há, por último, um fator mais importante ainda: a invasão de sua privacidade familiar. Tendo eu passado por situações próximas no passado, quando em entrevistas semelhantes fui abordado sobre temas nevrálgicos em relação a meus familiares — o uso de drogas, por exemplo —, e tendo avaliado essa experiência como péssima, eu penso que os familiares de Soninha deveriam ser poupados ao máximo da exposição.
Penso que, ao fazer declarações desse teor apimentado, Soninha deveria resguardar suas filhas e sua mãe, que provavelmente muito se orgulham dos predicados de ousadia, responsabilidade e profissionalismo da apresentadora. Mas elas, como o público que a assiste, devem ser preservadas de suas convicções pessoais quando expostas da forma com está sendo feita. Como no ditado, 'o exemplo não é a melhor forma de ensinar algo a alguém. É a única'."

Sobre essa última parte, só posso acrescentar que não vejo nenhum motivo para a família de Soninha se sentir constrangida, pelo contrário, congratulo-me com ela pelo exemplo de sinceridade e coragem. E não acho que ela devesse se resguardar de fazer declarações "de teor apimentado", assim como não acho que Guerra devesse nos poupar de comentários como os que ele fez acima: por mais que não veja neles nenhuma contribuição real ao debate que se poderia fazer, me serviu para demonstrar onde estão as discordâncias.

Visto o artigo, volto ao ponto inicial: a proposta de troca do eixo de "redução de demanda" por um eixo mais lúcido, onde seria feito paralelo sexo/sexualidade, drogas/drogalidade. Gostaria que fosse colocada como meta a definição de parâmetros para inclusão da "drogalidade" nos currículos escolares. Para isso, a comparação com sexualidade se revela de total pertinência: a partir dos parâmetros para o tema transversal "Orientação Sexual", publicados pelo Ministério da Educação e do Desporto, nos Parâmetros curriculares nacionais para o ensino básico fundamental (1o e 2o ciclos), em 1997, posso adaptá-los para sugerir parâmetros para uma "Orientação sobre drogas":

            - respeitar a diversidade de valores, crenças e comportamentos existentes e relativos aos psicoativos, desde que seja garantida a dignidade do ser humano;
            - compreender o contato com psicoativos como algo muito além de "resposta a crise", mas como busca de prazer numa dimensão saudável da normatividade humana;
            - conhecer os psicoativos, valorizar e cuidar da saúde como condição para usufruir das drogas como uma das possíveis fontes de benefício e prazer;
            - reconhecer como determinações culturais as características socialmente atribuídas aos usos de psicoativos, posicionando-se contra discriminações contra os usuários;
            - desenvolver consciência crítica em relação aos múltiplos significados dos psicoativos e seus usos;
            - identificar e expressar sentimentos, motivações e desejos, respeitando os do outro no que tange ao contato ou não com psicoativos;
            - desenvolver atitude crítica em relação a comportamentos consumistas de quaisquer natureza, inclusive de psicoativos;
            - reconhecer o respeito mútuo como necessário para convivência, independentemente das opções pelo uso ou não de psicoativos que as pessoas façam;
            - agir de modo solidário em relação aos usuários de psicoativos, principalmente aos usuários de psicoativos tidos como ilegais, e de modo propositivo na implementação de políticas públicas e instrumentos jurídicos (leis) voltados para a prevenção ou redução de riscos e de danos eventualmente resultantes seja do comércio ou contato com psicoativos seja da reação social de intolerância com os usuários;
            - conhecer e adotar práticas de uso protegido/mais seguro ao (e se) iniciar uso de psicoativos;
            - evitar contrair ou transmitir doenças que possam ser veiculadas pelo aparato de preparo ou consumo de psicoativos;
            - tomar decisões responsáveis a respeito dos psicoativos que usa;
            - procurar e exigir orientação para uso mais seguro de psicoativos.


E bom trabalho!

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