segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Série "Eventos" - 1 - Release sobre o I Simpósio Mineiro sobre DST/AIDS em populações carcerárias

Então (1998!) Coordenador do Programa Estadual de DST/AIDS da Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais, o texto abaixo foi usado como "briefing" e release para imprensa. É curioso, mais uma vez, perceber sua atualidade.


I SIMPÓSIO MINEIRO SOBRE DST/AIDS NAS POPULAÇÕES CARCERÁRIAS

LOCAL: HOTEL DEL-REY, 21 E 22 DE MAIO DE 1998, BELO HORIZONTE

ORGANIZAÇÃO: COORDENAÇÃO ESTADUAL DE Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e AIDS - CE-DST/AIDS - DA SECRETARIA ESTADUAL DE SAÚDE DO ESTADO DE MINAS GERAIS.

            COORDENADOR: Marcelo Araújo Campos

OBJETIVO: Discutir estratégias de assistência, vigilância epidemiológica e prevenção de DST/AIDS entre detentos.

PÚBLICO ALVO: Diretores de presídios, agentes carcerários, pessoas envolvidas na lida com portadores do HIV, entidades de direitos humanos, demais interessados.


INFORMAÇÕES BÁSICAS:

em Minas Gerais cerca de 15.000 pessoas presas, sendo 3.000 apenas em penitenciárias, cumprindo pena. As outras 12.000 estão em cadeias públicas e delegacias em condições terríveis, aguardando julgamento ou vagas em presídios que não devem surgir tão cedo,  já que as verbas para ampliação das penitenciárias do Brasil foram suspensas - a despeito de promessa do presidente da república - pelo organismo financiador internacional.

Há dois mitos na imaginação do público referentes aos presos: 1)de que as pessoas ficam presas para sempre (estamos falando de presos comuns, não de figurões), quando na verdade o tempo médio de detenção em Minas Gerais tem sido de 5 anos; e 2)de que os presos e presas ficam isolados e confinados em um espaço fixo; quando na verdade eles são uma população muito móvel (transferências de presídios por motivos vários: tratamentos de saúde, processos e outras razões de ordem judicial, lotação, etc). Os presos também recebem “visitas íntimas” (curiosamente - resultado da sociedade machista - habitualmente somente permitidas aos presos, não às presas), têm relações sexuais entre si e partilham drogas com pessoas de fora e do presídio. Todos estes fatores tornam os presídios altamente permeáveis às doenças do mundo exterior.

Confinamento em espaço físico reduzido, inexistência de condições sanitárias e de higiene dignas e desnutrição também são facilitadores do surgimento e transmissão de tuberculose, doenças de pele, parasitoses, hepatites e doenças sexualmente transmissíveis, inclusive HIV e Aids. Assim, aliando o ambiente favorável à propagação de doenças à mobilidade dos presos e ao fato de que a maioria retorna à sociedade em 5 anos, entende-se porque os presídios se tornam focos amplificadores de doenças transmissíveis. Um estudo de Minas Gerais, por exemplo, feito em Manhuaçu por Soares e outros, em 1995, encontrou prevalência de infecção pelo HIV de 31,7/100.000, ou seja, aproximadamente 15 vezes maior que na população em geral.

Controle de aids entre detentos é problema mundial, uma prioridade estratégica no controle da pandemia e uma dívida social para com os presos. As ações planejadas devem incluir facilitação de acesso a tratamentos, ampliação das intervenções preventivas e, o desafio maior, enfrentamento dos aspectos da realidade dos presídios responsáveis pela maior vulnerabilidade dos presos: superlotação, condições sub-humanas de vida, incapacidade do estado em assegurar segurança dos detentos, ambiente de violência e promiscuidade. As drogas, com seus múltiplos papéis nos presídios - fonte de prazer para os detentos, fonte de renda para detentos e funcionários, como parte da “cultura do presídio” terão que ser debatidas. Ao que parece, o problema maior em se ampliar a discussão sobre Aids nos presídios é que tal discussão fatalmente nos levará a pontos que denunciam ineficiência e mesmo cumplicidade do sistema carcerário. O governo então terá uma questão básica: reconhecer o problema e suas causas, portanto criando expectativa de seu enfrentamento e talvez solução, ou insistir em negá-lo ou, no máximo, discutí-lo em nível o mais superficial ou obscuro possível, de modo a não revelar e ter de assumir suas responsabilidades.

Percebe-se assim o efeito mais espantoso desta doença, a infecção pelo HIV: a capacidade de  deflagrar trasformações sociais. Ou as enfrentamos ou sofreremos as consequencias.

O texto da contra-capa do folder/convite para o evento é o seguinte:

“Existe tendência de reação à infeção pelo HIV e à aids, como a toda pandemia, com ações norteadas por isolamento físico e social dos portadores, enquanto o enfrentamento demanda interação. Entre a primeira reação, de isolamento (ainda presente, a despeito de sabidamente ineficaz e na verdade contra-producente), e os passos que estão sendo dados, de enfrentamento (no mínimo mais comprometidos com busca de soluções), houve e continua havendo muitas iniciativas que não lograram êxito e algumas histórias de sucesso.

Ambas as situações, de isolamento e de enfrentamento, de insucesso e de sucesso, têm muito a ensinar. Há duas lições fundamentais: são raríssimos os casos não evitáveis de infecção pelo HIV; e não há como alterar comportamentos de maneira duradoura sem abordar seus determinantes. No caso da aids nos presídios, busca de sexo seguro e não compartilhamento de seringas implicam reconhecer, de imediato, realidade que a sociedade tem relutado em abordar.

São muitos os componentes da vulnerabilidade dos detentos à aids de natureza conjuntural: deficiências na qualidade de assistência oferecida, na responsabilidade do estado pela sua segurança e, em última instância, nos objetivos da privação da liberdade: queremos isolar estas pessoas ou trazê-las de volta à sociedade? O propósito é vingança ou reeducação? Enquanto estas questões não são respondidas, estão acontecendo novas infecções, a epidemia se alastra, e os presídios se tornam focos disseminadores de tuberculose, hepatites, aids e da mais letal das doenças: desumanidade.

Bem sabemos que as ações propostas - intervenções educativas, distribuição de preservativos e de seringas (se permitida) - focalizadas na redução de danos dos comportamentos de risco, são ainda insatisfatórias. Mas estas ações, tão limitadas, estão permeadas pelo inconformismo, pelo desejo de romper o isolamento e o obscurantismo. Lembramos Ítalo Calvino:

“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte dele até deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preserválo, e abrir espaço”.

Como se vê, este “I Simpósio Mineiro sobre DST/AIDS nas Populações Carcerárias” nos exigirá coragem: substituir a epidemia de HIV pela de solidariedade, disposição para o enfrentamento, busca de dignidade. Porque a vacina é cidadania. E o HIV não respeita as grades.”.


Marcelo Araújo Campos

Belo Horizonte, 15 de Maio de 1998.

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